Especialistas falam sobre a dieta hospitalar e a importância de uma boa nutrição para o processo de recuperação
Publicado em 4 de maio de 2024 às 05:00 por Saulo Miguez
Sopa produzida em hospital de Salvador Crédito: Marina Silva/CORREIO
Quatrocentos anos antes de Cristo, o filósofo grego Hipócrates, pai da medicina, já havia dito: “Que seu remédio seja seu alimento e que seu alimento seja seu remédio”. A máxima se afirma com o avanço dos estudos que relacionam hábitos alimentares ao aparecimento e cura de doenças. Já encontramos, por exemplo, listas de alimentos anticancerígenos, anti-inflamatórios, que retardam a Doença de Alzheimer, Parkinson e diversas outras enfermidades.
O tema, além de tudo, é indigesto. Diversos profissionais que atuam na nutrição hospitalar evitam tratar do assunto em respeito às regras de compliance, organograma corporativo e outras questões que envolvem a elaborada gestão das unidades de saúde.
A reportagem procurou no período de um mês assessorias e nutricionistas de diversos hospitais públicos e privados da cidade. A única que aceitou falar com o CORREIO e abriu as portas da cozinha foi a responsável pela nutrição do Hospital Municipal de Salvador, Sandra Tavares.
Lanche fraco
Mãe de primeira viagem e sofrendo de hipertensão gestacional, a professora Raíla Santos, 29 anos, ficou quatro dias internada em um hospital particular de Salvador, onde realizou o tão sonhado parto normal. Ela conta que só viu o nutricionista uma única vez, assim que deu entrada no leito.
“O almoço até que era bem servido, com uma variedade de verduras, proteína, purê, arroz. Mas o lanche e o café da manhã poderiam ser melhores. Era tudo muito restrito: uma pequena porção de fruta, pão e café preto. No lanche vinha um suco”, relembra.
Por estar puérpera e amamentando, seu organismo naturalmente era mais exigido, o que fazia com que sentisse mais fome, necessidade de nutrientes e de alimentos que lhe dessem uma sensação maior de saciedade.
A experiência da analista de folha de pagamentos Ana Lúcia de Lima Passos, 46 anos, foi um pouco melhor. Entre os meses de setembro e dezembro do ano passado, ela ficou nove dias internada em dois hospitais particulares da capital baiana para tratar uma arritmia cardíaca. Ana precisou fazer um cateterismo de urgência e colocar um stent. “A comida veio ao meu gosto, dentro das restrições que eu tinha, mas ao meu gosto”, disse.
Apesar de atenderem o desejo da paciente, ela acredita que os cardápios poderiam ter mais variedade, sobretudo nos lanches entre as refeições principais. “Poderia ser mais diversificado. Porque é possível servir refeições saborosas e que sejam saudáveis”.
Ultraprocessado pode?
Entre as queixas mais comuns dos pacientes está o consumo exagerado de alimentos ultraprocessados. Os nutricionistas ouvidos pelo CORREIO contam que a oferta desse tipo de produto está relacionada à operacionalização e redução do risco de contaminação. Os ultraprocessados praticamente não precisam ser manipulados por quem prepara a refeição e, quanto menor essa manipulação, maior a segurança do ponto de vista biológico.
Ela destaca que os nutricionistas têm ganhado espaço e voz nos hospitais. Por isso, o diálogo com a classe médica melhorou muito. “Um paciente nunca é acompanhado por um único profissional e essa conversa precisa acontecer entre todos os componentes da equipe. Porque tudo isso interfere no bem-estar”.
Elos de cuidado
Quando se fala em nutrição hospitalar, é fundamental destacar que existem os setores de clínica e produção, que estão intimamente ligados à junta médica. De acordo com a coordenadora de nutrição do Hospital Municipal de Salvador (HMS), Sandra Tavares, no caso do HMS uma equipe de nutrição clínica acompanha as liberações de dietas estabelecidas pelos médicos, para então encaminhar o cardápio ao setor de produção.
Terapias que caminham juntas: a nutrição e a medicina Crédito: Marina Silva
“Essa dieta leva em consideração a condição clínica e nutricional do paciente”, disse. Antes das refeições serem servidas, ainda é feita uma avaliação sensorial pelo nutricionista clínico responsável.
Ela conta que as dietas são padronizadas por patologias, mas essa padronização é ajustada caso a caso, conforme o grau de aceitabilidade e estado nutricional de cada paciente, que vai do nível I (bom estado) ao III (comprometido e com risco de agravamento pela doença).
A especialista em Nutrição Clínica e Saúde Pública, além de integrante da atual gestão do Conselho Regional de Nutrição, Vanessa Cabral, destaca que a alimentação de um hospital é coletiva, ainda que as particularidades como alergias sejam consideradas. “É necessário pensar no todo e fazer um planejamento”, disse.
Vanessa conta ainda que as refeições são servidas em diferentes tipos de consistência, uma vez que há pacientes com dificuldades de deglutição, deficiência de arcada dentária, entre outras questões. “Essa alimentação vai de sem restrição à líquida. Se o paciente, por exemplo, fez uma cirurgia abdominal extensa, ou de bucomaxilo, que o impede de mastigar, isso precisa ser observado no momento de formular a dieta”, pontuou.
Em casos específicos, como um paciente que teve mais de 10% do corpo queimado, chamado grande queimado, é necessário oferecer uma quantidade maior de proteína.
“Temos que caprichar nos alimentos que são de grande oferta proteica e, muitas vezes, é necessário fazer uma suplementação de micro e macro nutrientes. Essas pessoas costumam ter uma demanda energética e nutricional maior porque o corpo está catabolizando mais. Se isso não vier pela alimentação, ele começa a usar as reservas do corpo”, advertiu.
Os alimentos devem ser produzidos e servidos no mesmo dia, respeitando os critérios da RDC 216, Regulamento Técnico de Boas Práticas para Serviços de Alimentação, e o controle do binômio tempo x temperatura, para evitar que a comida chegue aos leitos com risco de contaminação.
Alimentos devem ser produzidos e servidos no mesmo dia Crédito: Marina Silva
Por esses cuidados, a entrada de comida com acompanhantes nos hospitais costuma ser proibida. Sandra Tavares conta que no HMS, por exemplo, todos os alimentos fornecidos atendem uma política de compra bastante rigorosa.
“A gente avalia desde a estrutura física do fornecedor, o acondicionamento, a realização dos exames periódicos, transporte. A partir dessa pontuação, o fornecedor vai ser qualificado ou não”, detalhou. Pacientes que por ventura sejam flagrados consumindo alimentos que não foram prescritos pelo hospital são notificados.
Cozinha própria, verde e variada
Em 2021, o Hospital Municipal de Salvador conquistou o selo Green Kitchen, um reconhecimento às práticas sustentáveis e da melhoria de todo o processo de produção e estímulo a uma alimentação saudável no ambiente hospitalar.
A certificação é uma iniciativa da Fundação para a Pesquisa em Arquitetura e Ambiente, que alcança desde o uso de equipamentos sustentáveis até a escolha de alimentos orgânicos e livres de agrotóxicos. O HMS considera ainda a sazonalidade nas suas dietas, ou seja, prepara as refeições com ingredientes da época.
“Cem por cento dos temperos que nós utilizamos são naturais. Para dar sabor à comida, usamos muita cebola, alho, tempero verde e os pratos são finalizados com azeite de oliva. Além disso, usamos mel, ovos orgânicos e ‘proteína de verdade’ nas nossas refeições. Aqui não servimos embutidos, e sim carne, peixe e frango”, disse a coordenadora.
57 mil refeições
Diferente do que ocorre em outros hospitais, o serviço de produção de alimentos do HMS não é terceirizado. Sandra conta que por ser uma cozinha própria a comunicação entre a clínica e a produção é mais linear e sem ruídos, o que é fundamental para produzir com qualidade todos os meses as cerca de 57 mil refeições.
As refeições são distribuídas entre os clientes internos e externos (colaboradores, pacientes e acompanhantes). A quantidade de alimentos servida aos pacientes é de 42.700 kg por dia, ou 1.281 toneladas/mês.
Entre os feitos, o setor tem conseguido manter a taxa de aceitação de alimentos entre os pacientes acima dos 92%, inclusive com os pacientes diabéticos, que possuem maiores restrições.
Quando o nível de aceitação da dieta está abaixo dos 70%, é feita a intervenção. “Quando a rejeição está relacionada ao sabor da comida, a gente faz essa mudança e a nutrição clínica entra com indicação de terapia específica”, detalhou Sandra.
É consenso entre os profissionais ouvidos que a nutrição está diretamente ligada ao prognóstico e redução do tempo de internação. “Nosso objetivo é também tornar o tratamento mais leve através da alimentação”, destacou Sandra.
Atualmente, 88 colaboradores atuam no setor de nutrição, entre eles 19 nutricionistas. Os colaboradores estão distribuídos entre Coordenação de Nutrição, nutricionistas clínicos e de produção, técnicos em nutrição, cozinheiros, magarefes, auxiliares de cozinha, copeiros, auxiliares de serviços diversos, auxiliar administrativo e jovens aprendizes.
Parte de equipe envolvida na produção de alimentos do HMS Crédito: Marina Silva
Diariamente para prescrição das dietas, produção, montagem e entrega dos pratos estão envolvidos oito nutricionistas clínicos, um nutricionista de produção, quatro técnicos em nutrição, um cozinheiro, dois auxiliares de cozinha e 11 copeiros dietistas, que se distribuem nos plantões diurno e noturno.
Como eles são formados?
De acordo com a professora do curso de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Raquel Rocha, desde o início da formação profissional os futuros nutricionistas têm contato com componentes curriculares que darão suporte à compreensão do funcionamento do corpo, da composição de alimentos e de como os nutrientes desses alimentos são utilizados no organismo, seja para pessoas sadias ou enfermas.
Considerando o foco da nutrição hospitalar, no currículo do curso de Nutrição o conteúdo está presente em várias disciplinas, como Avaliação Nutricional, três componentes destinados a Dietoterapias, dois componentes de Técnica Dietética e Administração de Serviços de Alimentação Coletiva, a Educação Nutricional e, na etapa final do curso, os estágios curriculares obrigatórios.
“Estes componentes contemplam a abordagem nutricional deste a avaliação do estado nutricional da pessoa atendida ou da coletividade, planejamento alimentar e modificações no alimento/preparação que atendam a pessoa doente”, disse Raquel.
As matérias indiretamente ligadas à nutrição hospitalar iniciam-se no ciclo básico do curso. “Elas auxiliam na compreensão micro do ser humano e do alimento, para que o discente possa compreender as intervenções alimentares necessárias a atender a pessoa assistida. Aqui podemos citar Química, Bioquímica, Bromatologia dos alimentos, Anatomia, Fisiologia, Patologia”.
No curso de Gastronomia da Ufba, existe a matéria Gastronomia hospitalar, que pode ter interlocução com o curso de Nutrição. O tema também é apresentado na Especialização em Nutrição Clínica sob a forma de Residência da Escola de Nutrição da Ufba.
Fonte: https://www.correio24horas.com.br/minha-bahia/o-que-vai-no-prato-do-paciente-e-possivel-tornar-a-comida-de-hospital-saborosa-e-nutritiva-0524