Sindhosba

A saúde pesa no orçamento do brasileiro. E não se paga uma vez só. A população desembolsa tributos e, em muitos casos, também banca um plano médico, na expectativa de ter socorro garantido. Não adianta: mesmo com tudo isso, não consegue atendimento decente. Quando precisa, de fato, dos serviços, descobre que os procedimentos necessários não estão disponíveis, ou enfrenta demora na autorização. Sem contar o descaso que permeia toda a comunicação. Em algumas situações, a burocracia e a negligência das operadoras provocam até morte do usuário e um drama nas famílias em consequência da perda.

É o que vive o estudante Tiago Santos Lima, 22 anos. A mãe dele, que não quis se identificar, está em depressão desde que o irmão, Laércio Tomaz dos Santos, 49, faleceu, há 20 dias. “Meu tio perdeu a vida por negligência do plano de saúde. Nunca vou me esquecer de vê-lo em uma maca, com dificuldades para respirar. Ele pediu para segurar minha mão e começou a ficar inchado. Estava com medo de morrer”, diz o jovem.

Santos trabalhava como vigilante e deu entrada no Hospital Regional do Guará (HRGu) sentindo fortes dores de cabeça e na região do peito, em 14 de maio. O hospital não tinha equpamentos para atendê-lo. A família tentou, então, atendimento com o convênio, da Associação de Assistência Plena em Saúde (Pame).

Nos  hospitais credenciados, não havia vaga.  Quase sem esperanças de conseguir a internação, O estudante e os demais familiares foram até o Hospital Santa Lúcia Norte, antigo Prontonorte, que era próximo a um dos indicados pelo plano. Lá, descobriram que o centro médico aceitava o convênio e que havia leito para receber o tio. Foi necessário desembolsar R$ 1 mil à vista para custear o traslado da UTI móvel do Guará até a Asa Norte — transporte que o plano se recusou a autorizar. Os familiares deram  entrada na noite de sábado no hospital particular e não encontraram nenhum impedimento por parte do centro médico em aceitar o plano. Mas já era tarde. Ele morreu no dia seguinte.

Indignados, os familiares culpam a ineficiência do atendimento do plano. “Por eles, eu não saberia que meu tio podia ter acesso à UTI. Pode ser que outros hospitais aceitem o plano, mas nunca vou saber a verdade. Parecia que eles queriam que meu tio morresse ali mesmo, no hospital público”, desabafa. A reportagem tentou contato com a Pame, mas não conseguiu acesso nos números de telefone divulgados.

Os consumidores não estão de braços cruzados diante dos descasos. Somente a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) registrou 8.116 reclamações, em março, nos canais de atendimento da autarquia. O número é 2,11% superior em relação ao mesmo período do ano passado. No acumulado do primeiro trimestre deste ano, são 30.010 queixas, alta de 3,55% na comparação com os três primeiros meses de 2015.

Mais queixas

O número de beneficiários, ao contrário, está caindo. Em março deste ano, eram 48,82 milhões, redução de 2,65% em relação ao mesmo período de 2015, de acordo com dados da ANS. Para o advogado Max Kolbe, especialista em direito do consumidor, a revolta provocada por negativas de atendimento está levando os consumidores a prestar queixas com maior frequência.

Casos como o da família Santos deveriam ser punidos com rigor. “Situações assim configuram uma ilegalidade que deveria ser apurada como homicídio culposo”, diz.

O artigo 66 do Código de Defesa do Consumidor prevê detenção de três meses a um ano, além de multa, a prestadores de serviços que fizerem “afirmação falsa ou enganosa” ao usuário. Para Kolbe, as punições são brandas. “Deveriam ser milionárias.”

Insatisfeita com a rede credenciada ao antigo plano de saúde, a servidora pública Mônica Moraes Rodrigues Sales, 40, fez portabilidade para a rede Bradesco Saúde em agosto de 2015. Mas a mudança de operadora não a livrou de enfrentar problemas. Grávida de sete meses, ela começou a fazer o pré-natal pela rede conveniada com o novo plano de saúde em dezembro passado. Ao tentar marcar a cesariana em maio, soube que o médico que a acompanhou desde então cobraria R$ 1,3 mil pelo parto. Assustada, procurou outros médicos que não cobrassem tanto pelo serviço, mas se surpreendeu em não conseguir nenhuma opção pelo convênio.

“Primeiro, meu médico disse que o plano pagava pouco e por nisso não aceitaria sem que eu complementasse o valor. Fui a três outros médicos e um deles me cobrou R$ 3,6 mil. Fiquei revoltada. Pago R$ 465 todo mês e não consigo um profissional que faça o serviço pelo convênio”, critica.

A servidora Ritalee Gonçalves Bastos de Brito, 40, também enfrentou negativas das operadoras. Em fevereiro, ela soube que precisaria passar por um procedimento para a retirada de um mioma uterino. Desde então, encontrar médico que aceite a cobertura do plano Bradesco Enfermaria para realizar a cirurgia se tornou um tormento. “Eles reclamam que o plano não paga um valor decente”, conta.

Somente após várias pesquisas e quatro meses de procura, Ritalee encontrou um médico que aceita o plano. “Boa parte do meu salário já é gasto com o plano de saúde. A cada médico que eu ia, era uma frustração. Sentia vontade de chorar e impotência. Preciso dessa cirurgia para voltar a ter uma vida normal”, desabafa. “Ao ligar para a empresa e explicar a situação, apenas ouvia que nada podia ser feito e que a reclamação deveria ser feita na ouvidoria do hospital. Simplesmente jogaram o problema para o outro lado”, lamenta.

Em nota, a Bradesco Saúde comunica que “cumpre rigorosamente as normas e resoluções vigentes editadas pela ANS”. “A seguradora esclarece manter acordo operacional com seus referenciados, do qual consta tabela de remuneração previamente ajustada entre as partes para todos os procedimentos cobertos”, informa. A empresa ainda destaca que  está em contato com as seguradas para apurar em detalhes o ocorrido e “adotar as providências cabíveis”.

Em 15 de maio, a ANS reforçou a exigência de que as operadoras qualifiquem os atendimentos prestados aos consumidores. As companhias deverão dar respostas em até cinco dias de solicitações de procedimentos ou serviços de cobertura assistencial, além de disponibilizar canais de contato presencial e telefônico, entre outras medidas.

Mas é difícil usar isso a favor dos clientes, explica a advogada Estela Tolezani, do escritório Vilhena Silva Advogados. Ela ressalta que, desde 2013, negativas de autorizações para procedimentos médicos devem ser feitas por escrito. Operadoras também não podem negar cobertura em casos de urgência e emergência.

Desde então, nada mudou. “Continua a mesma bagunça. Se o problema do cliente que chega a mim não gira em torno de uma cirurgia, eu mesma recomendo a não entrar com um processo”, afirma Estela. O advogado Sérgio Parra, do escritório Parra Advogados, lamenta que a Justiça se tornou a única forma de os consumidores serem atendidos. “Praticamente 99% dos casos acabam indo ao Judiciário”, diz.

A ANS ressalta que realiza o monitoramento contínuo das operadoras de planos de saúde, incluindo o acompanhamento e o atendimento oportuno das demandas dos beneficiários. “Atualmente, mais de 90% das queixas de natureza assistencial são resolvidas a curto prazo e em  benefício do consumidor”.

A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) defende que qualquer descaso com o consumidor deve ser punido, embora tenha o entendimento de que “quase sempre” as ações judiciais referem-se a tratamentos não previstos nos contratos.

A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) recomenda que a população fique atenta aos desperdícios que ocorrem no setor, como, por exemplo, exames e cirurgias desnecessárias, a fim de ajudar  racionalizar  o uso dos serviços de saúde.

Reajuste recorde

No último dia 3, a Agência Nacional de Saúde Suplmentar (ANS) autorizou o reajuste de até 13,75% para as operadoras de planos de saúde familiar e individuais. Foi um aumento recorde e ficou acima da inflação registrada em 2016. O Índice de Preços ao Consumidor (IPCA) ficou em 10,67% no ano passado. Na prévia de maio, alta do indicador acumulada em 12 meses foi de 9,62%. A correção dos valores começará a valer a partir da data de vencimento de cada contrato, devendo ser igual ou inferior ao índice fixado pelo órgão regulador. São atendidas em todo o país por planos de saúde individiuais e familiares 8,3 milhões de pessoas. No ano passado, foi autorizado aumento de 13,55%.

Fonte: Correio Braziliense