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O sistema de saúde de um país é uma engrenagem complexa e delicada que precisa ser cuidada. No Brasil, esses mecanismos estão cada vez mais descalibrados numa tensão que é um risco para a sociedade.

A pandemia gerou um impacto enorme nesse sistema, não só pela demanda que nos últimos três anos padeceu, quanto pelas amplas mudanças que tem atravessado a saúde privada que pode impactar no sistema público.

Hoje, 50,3 milhões de brasileiros têm planos de saúde. Desse total, 41,4 milhões (82%) estão ligados a empresas. Assim, apenas 8,9 milhões encaixam-se nas categorias “individual” ou “familiar”. Com a demissão de funcionários e o cancelamento de benefícios de saúde, fruto da crise econômica doméstica e mundial, as operadoras ficaram com menos pessoas para diluir o risco. As receitas auferidas com contraprestações, ou seja, mensalidades, não têm sido suficientes para sustentar as despesas assistenciais das empresas do setor.

Já são seis trimestres consecutivos de prejuízos operacionais, o que equivale a dizer que, desde abril de 2021, o negócio plano de saúde não consegue se pagar. Um brutal aumento de custos assistenciais seja por procedimentos represados pela pandemia ou pela inflação dos insumos hospitalares, está por trás destas dificuldades. Apenas em 2022, até setembro, o rombo acumulado chegou a R$ 11 bilhões. Além disso, no terceiro trimestre a sinistralidade dos planos assistenciais –que representa quanto do que as operadoras arrecadam é repassado para pagar prestadores– chegou a 93,2%. Os resultados do quarto trimestre das empresas ligadas a saúde com capital aberto, mantém essa tendência.

Nas últimas semanas, por exemplo, a operadora HAPVIDA, uma das maiores do país, divulgou balanço com prejuízo líquido de R$ 316,7 milhões, revertendo o lucro de R$ 200 milhões alcançado no mesmo período, em 2021. As ações despencaram mais de 30% em um único dia, o que corresponde a uma perda de R$ 12 bilhões do valor da empresa.

Na avaliação de especialistas, o balanço da HAPVIDA não é um fato isolado e prenuncia números sofríveis que devem marcar o setor nos próximos meses. Quando comparada às demais profissões, a medicina segue como uma das mais rentáveis. Entretanto, grande parte dos médicos depende da sua força de trabalho para se manter. É um mito achar que todos são ricos.

Ao longo dos últimos 20 anos, mudanças ocorreram na área médica. Os lucros dos consultórios diminuíram em decorrência da redução nos ganhos e do aumento nos gastos. A concorrência é maior, tanto pelo aumento do número de escolas médicas quanto pela entrada de profissionais oriundos de outros países que revalidam. Com o surgimento das operadoras de saúde, o paciente disposto a pagar por um serviço privado praticamente desapareceu e o consumidor tem, agora, os seus direitos regulamentados.

Muitos profissionais da área estão sentindo as mudanças de um mercado de saúde privado onde os principais investidores eram médicos bem-sucedidos, que nos últimos anos venderam os hospitais para grandes grupos econômicos que acharam que a saúde era um negócio rentável.

Assim, a cenografia da diretoria desses hospitais passou de médicos a engenheiros, economistas e investidores, que tomam decisões, muitas vezes só olhando o lucro. Face a entrada de investidores fora da área médica e o encarecimento da assistência à saúde em todo o mundo, a única coluna da planilha de custos que os administradores acreditam que pode ser reduzida é a remuneração médica.

Todas as mudanças têm contribuído para uma contínua redução no salário dos médicos, acompanhado por um grau maior de exigência, tanto na capacidade técnica quanto na administrativa.

Preocupada, a Comissão Nacional de Saúde Suplementar, encabeçada pela Associação Médica Brasileira e Associação Paulista de Medicina, apresentaram o balanço das negociações com as operadoras de planos de saúde em relação aos honorários médicos em 2022 e alertaram que “o cenário na saúde suplementar continua inalterado e a legislação é a mesma com a Lei 13.003/2014, que prevê reajuste anual, mas nunca definiu exatamente qual seria esse valor e muitos não respeitam”. Para que a calça feche, apertam aos médicos.

Para ajudar a criar a tempestade perfeita, existe um aumento no número de faculdades e profissionais de saúde, de baixa qualidade. Profissionais mal preparados aumentam os custos, solicitando avaliações e exames desnecessários ou realizando procedimentos sem indicação. Dos recém-formados avaliados pelo CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) em 2016, mais da metade foi reprovada, mostrando não ter conhecimentos básicos de situações cotidianas do atendimento médico.

Assim, o sistema privado atravessa uma crise aguda ainda não percebida pela maioria da sociedade brasileira, mas padecida pelo pessoal da saúde, da enfermagem e da medicina.

Se o sistema de saúde privado continua nessa tendência, o Sistema Único de Saúde começará a receber mais destes pacientes expulsos pela crise que atravessam as empresas do setor. Uma revisão e reforma profunda precisa ser realizada imediatamente. Sobrevivemos a uma pandemia, não precisamos nem falar da prioridade que o sistema de saúde tem em nossas vidas.

 

*Mauro Tamagno é Cirurgião Torácico, MBA em gestão de saúde (FGV).

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nicolas-jose-isola/2023/03/a-profunda-crise-do-sistema-de-saude-privado.shtml