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Frequentemente confundida com tristeza, a depressão é muito mais que um acesso de melancolia provocado por uma perda ou um fracasso.

Aos 62 anos, bem-sucedido profissionalmente, com casamento estável e filhos crescidos e encaminhados na vida, A.P., que prefere ser identificado apenas pelas iniciais, conta que começou a sentir uma angústia sem razão. Com o passar dos dias e meses, o sentimento foi ficando mais intenso e ele, assustado. “Não sabia o que era aquele aperto no peito.Passei a ter que fazer um esforço enorme para acordar, sair da cama, tomar banho, pegar o carro e trabalhar”, diz. Ex-fumante e sedentário, A.P. passou a achar que estava prestes a ter um ataque cardíaco. A dor no peito persistia, o cansaço e o desânimo, também. “Procurei o médico e passei a fazer exames. Fui vasculhado de todas as maneiras”, relata.

Os exames não diagnosticaram nenhuma doença cardíaca, mas identificaram um transtorno que A.P aceitou com relutância – depressão. “Acho que eu preferia ter uma doença cardíaca do que ouvir o médico me falando que estava deprimido. Isso é coisa de quem não tem o que fazer”, diz.

Não é um sentimento incomum. “A depressão carrega um estigma, como se fosse uma fraqueza. Algumas pessoas pensam que poderiam evitá-la se tivessem um caráter mais vigoroso”, diz o psiquiatra Emmanuel Nunes de Souza, de São Paulo. Embora essa percepção venha mudando, o preconceito persiste, principalmente entre o público masculino. As mulheres são mais afetadas pelo problema, na proporção de dois para um, segundo estudos, mas são os homens que têm mais resistência em reconhecer o problema e buscar tratamento, afirma Souza. Parafraseando o escritor Oscar Wilde, é um mal que não ousa dizer seu nome.

Frequentemente confundida com tristeza, a depressão é muito mais que um acesso de melancolia provocado por uma perda ou um fracasso. “A tristeza é passageira. A depressão, não. Chega e vai tirando a pessoa do jogo da vida”, diz Alexandre Horta e Silva, psiquiatra e psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Trata-se de um grave transtorno mental que, entre muitos sinais, se revela na perda de interesse por atividades antes prazerosas e na incapacidade de realizar tarefas diárias simples. Os doentes têm baixa autoestima, cansaço, falta de concentração. Muitos não conseguem comer ou dormir e acumulam sentimentos de culpa. “Pessoas que levam uma vida normal, quando têm esses sintomas, acham que tudo não passa de bobagem. Relutam em buscar ajuda”, diz o psiquiatra Luiz Antonio Martins, do Hospital Pró-Cardíaco. Em uma sociedade que valoriza tanto a felicidade e as conquistas, os indivíduos têm dificuldade em reconhecer fraquezas. “A sociedade reprime a tristeza e nós somos seres psicossomáticos. Passamos para o corpo as angústias da mente.”

Em alguns casos, fatores sociais funcionam como gatilhos para o transtorno. Pode ser a perda do emprego, a morte de um ente querido, a mudança para outro país ou uma separação conjugal, por exemplo. A segunda possibilidade é que o transtorno seja de caráter genético, hereditário. E há, por fim, indivíduos cujos traumas adquiridos na infância os tornam mais frágeis para enfrentar as situações da vida adulta, deixando a depressão se esgueirar mais facilmente.

Sejam quais forem os motivos – e muitas vezes eles permanecem desconhecidos -, os números de casos são crescentes. A estimativa mais recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de que mais de 300 milhões de pessoas convivem com a depressão no mundo, um aumento de 18% na comparação com o período que vai de 2005 a
2015. Ao longo da vida estima-se que entre cada 100 pessoas, 15 apresentam ou já apresentaram algum episódio depressivo. No Brasil, os dados da organização indicam 11,5 milhões de pessoas afetadas – o equivalente a 5,8% da população. É o país com maior prevalência de casos na América Latina.

Além da dimensão humana, há um claro e nocivo efeito econômico. Até 2020, a OMS adverte que a depressão será o maior motivo de afastamento do trabalho no mundo. Entre os pacientes deprimidos, o número de faltas ao longo de um período de 30 dias chega a ser duas vezes maior que o de outras pessoas. O prejuízo à produtividade calculado pela OMS é de US$ 1 trilhão por ano.

Em 2016, 75,3 mil trabalhadores com depressão tiveram direito a auxílio-doença no Brasil, o equivalente a quase 38% de todas as licenças médicas motivadas por transtornos mentais e comportamentais naquele ano.

Para os pacientes, os estragos vão além dos efeitos do transtorno em si. Nos últimos anos, pesquisas científicas têm reforçado que a depressão tornou-se um importante fator de risco para outro mal sério – as doenças cardíacas, que respondem por 30% de todas as mortes no Brasil.

“Na hierarquia dos fatores que causam doenças cardiovasculares, a depressão é tão importante quanto o colesterol alto”, afirma o cardiologista e professor Carlos Alberto Pastore, diretor de serviços médicos e supervisor da seção de eletrocardiografia do Instituto do Coração, de São Paulo.

A Associação Cardíaca Americana, uma das mais respeitadas organizações da área, tem advertido sobre o estreito vínculo entre esses dois problemas de saúde pública. “Sintomas de depressão, principalmente em grau elevado, estão associados à morbidade e ao aumento da mortalidade dos pacientes portadores de doenças cardiovasculares, mesmo depois de controlados os outros fatores de risco”, publicou a instituição, em um artigo científico.

No Rio de Janeiro, um estudo de Martins, do Hospital Pró-Cardíaco, corrobora as evidências de que os portadores de transtornos depressivos apresentam alterações sistêmicas que podem causar infarto agudo do miocárdio e angina.

Para entender o que ocorre, um pouco de biologia é necessário. Os fatores de risco da depressão e da ansiedade são produzidos pelo sistema nervoso autônomo, que controla funções essenciais como respiração, temperatura e digestão. Também é o responsável pelas respostas do organismo frente às modificações e aos estímulos do ambiente externo. Basta o cérebro identificar uma situação de perigo, estresse ou angústia para que partes do sistema nervoso sejam acionados. Como um exército diante da ameaça inimiga, essas estruturas entram em prontidão. Comunicam-se umas com as outras e se preparam para o combate. O coração acelera o ritmo, os pulmões trabalham mais para oxigenar o corpo, músculos são retesados e os sentidos se aguçam.

Isso é natural para a sobrevivência humana. O problema começa quando alguns coadjuvantes da depressão, como o estresse crônico ou a ansiedade, ativam incessantemente algumas dessas respostas. Os níveis hormonais não voltam ao normal. O organismo passa a trabalhar como uma máquina que opera acima de sua capacidade, o que pode danificar estruturas como as artérias que levam o sangue pelo corpo ou causar arritmias.

Um dos maiores desafios ao tratamento da depressão é detectá-la precocemente. Há vítimas que passam por episódios intensos, que duram de seis a oito meses, em média, e depois enfraquecem. Nesses casos, os efeitos costumam ser graves o suficiente para incapacitar a pessoa, o que funciona como sinal de que é hora de buscar ajuda especializada. Em episódios mais leves, a pessoa consegue trabalhar e sair de casa, mas isso encobre o transtorno até torná-lo crônico. A pessoa sofre calada por mais tempo – meses e até anos – antes de buscar um diagnóstico.

Em geral, a ocorrência da depressão se torna mais comum a partir dos 30 ou 40 anos, embora possa afetar pessoas de qualquer idade. Estudos científicos sobre a influência do smartphone e da internet no isolamento de jovens e adolescentes – e seu papel na depressão – ainda são incipientes. Parte da comunidade médica diz que as novas gerações estão preparadas para lidar com as tecnologias recentes, sem repercussões mais graves para a saúde mental. Mas outra parte está preocupada. “[O uso do celular e das redes sociais] dá a impressão de uma comunicação intensa, mas não há nenhum contato ao vivo”, diz Souza. “É um rebaixamento da vivência humana.”

Embora seja considerada “o mal do século”, a depressão já era descrita pelo grego Hipócrates, o pai da medicina, por volta de 400 a.C.. Naquela época, o problema era tratado com purgativos, que, se imaginava, limpariam o organismo e eliminariam as sensações desagradáveis dos doentes. Demorou muito para que a depressão ganhasse, de fato, remédios à altura. “Até a década de 40 [do século passado], praticamente não havia muito o que fazer”, diz Silva. A situação mudou para valer com o desenvolvimento da fluoxetina, que começou a ser vendida em meados dos anos 80, sob a marca Prozac. A mais recente geração de medicamentos baseia-se na vortioxetina, que chegou ao mercado em 2014, com o nome Brintellix.

Essas drogas agem no organismo corrigindo os desequilíbrios que provocam a depressão. Explica-se: os impulsos elétricos do cérebro são transmitidos por meio dos neurônios. Essas células não se tocam. Entre uma e outra há pontos de junção chamados sinapses, por onde circulam substâncias responsáveis por completar a transmissão. Quando os níveis dessas substâncias – como serotonina e noradrenalina – ficam comprometidos, é como se a corrente se rompesse, o que leva à depressão. Ou seja, embora seja popularmente entendida como um mal da alma, a depressão tem uma explicação química, que ocorre dentro do corpo.

Quando o médico acerta no medicamento e na dose mais adequada, os sinais da depressão começam a desaparecer entre duas e três semanas. “O paciente melhora independentemente da vontade dele porque a alteração é corrigida”, diz Silva. A recomendação é que a medicação prossiga por oito meses a um ano, para evitar recaídas.

Além das drogas, os médicos estão adotando tratamentos com abordagens mais amplas, principalmente para evitar as complicações cardíacas. No Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, uma das linhas é a cardiologia comportamental. São pesquisas que buscam relacionar fatores psicossociais – estresse, renda, trabalho, relações familiares etc. – com a incidência de doenças cardiovasculares. Os estudos também diagnosticam o quanto esse estado de ânimo afeta os pacientes na manutenção dos tratamentos e das recomendações médicas. “É comum que as pessoas deprimidas ignorem os cuidados que devem seguir para não adoecer novamente”, diz o cardiologista Marcelo Katz, coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa Cardiovascular (Napec) do Einstein.

Além de estimular as atividades físicas, o Napec recomenda outras ações, como meditar, relaxar e manter hábitos saudáveis. “A meditação é a musculação do cérebro. Um cérebro fortalecido reage melhor diante das situações de estresse, das dificuldades que fazem parte da vida de todos. O estresse nada mais é do que a forma como se lida com essas situações”, afirma o médico.

Na Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do Exercício do Instituto do Coração (Incor), o trabalho com pacientes que passaram por doenças graves busca tirá-los da espiral negativa eventualmente provocada por esses problemas. “Usamos o exercício físico porque é uma atividade que produz endorfina, melhorando e estimulando a sensação de de bem-estar. Ao mesmo tempo, atividades físicas combatem a obesidade, diminuem o colesterol, atuam contra todos os fatores de risco”, afirma o coordenador da unidade, Carlos Eduardo Negrão, professor titular de fisiologia do exercício da Universidade de São Paulo (USP).

Atacar o preconceito é outra arma. A OMS lançou, recentemente, a campanha “Vamos conversar” (“Let’s talk”, em inglês), na qual enfatiza a rejeição e a incredulidade que as pessoas manifestam ao receber o diagnóstico. “Não se fala, não se quer falar, não se trata do assunto. Ainda há muito analfabetismo em relação às doenças mentais. E o diagnóstico da depressão é vítima disso”, diz a assessora regional de saúde mental da Organização Panamericana de Saúde (Opas), Dévora Kestel.

Nos últimos 20 anos, o quadro vem mudando, com mais pessoas procurando os consultórios mais cedo, diz Silva. “As pessoas confundem menos tristeza com depressão e já têm ideia de que há drogas muito efetivas para resolver o problema.”

Apesar dessa mudança gradual, nos países mais desenvolvidos quase metade das pessoas com depressão não é diagnosticada e fica sem tratamento. O percentual salta para algo entre 80% e 90% entre as nações menos desenvolvidas. “Cada dólar que os serviços de saúde investem no tratamento da doença traz um retorno de até US$ 4, principalmente, no que diz respeito à produtividade”, diz Dévora, da Opas.

A redução dos casos de depressão também pode ter um grande impacto no número de suicídios. Quase 800 mil pessoas se suicidam por ano no mundo, o que equivale a uma morte a cada quatro segundos. “Uma identificação e um tratamento precoces da depressão são uma maneira muito eficaz de reduzir esse número”, afirma a especialista.

 

Fonte: Valor